TOMAZ
de FIGUEIREDO - Poeta
E o tufão na mente, que não cessa!
E a opressão da mágoa, que não passa!
E a cobra de lume na cabeça!
E o peito, a sugá-lo, uma carraça!
E cheia, sempre, e de agonia, a taça!
E o mesmo que, eterno, recomeça!
E, no ouvido, o estampido de uma peça!
E esta ideia fixa da desgraça!
E, na verdade, o lio da preguiça!
E o vão clamar a Deus e à Justiça!
E um bandido horrendo a fazer troça!
E o poete que o demónio chuça!
E o saber, que o meditar aguça!
E o amor pasmado numa fossa!
In Poesia I, “Caixa de Música”, IN-CM
Agora,
estão seguros de que já não posso fazer-lhes sombra,
e todos são muito meus amigos.
Deixo cair os braços
e abro as mãos;
os meus braços já não se querem erguer,
nem as minhas mãos segurar.
A morte que venha
se quiser vir…
in Poesia II, Poesia Diversa, IN-CM
DELÍRIO
O LAGO
Como é grande, sente-se, a dor que o atormenta quando descreve o “mal” de que se considera possuído: o da impossibilidade de sentir o amor que só, racionalmente, se lhe apresenta conveniente: o amor aos seus, à sua Casa, à sua obra, aos livros que não chegou a escrever, às ideias que lhe nortearam a existência. E do seu girar sobre a própria dor, girar contínuo que o não abandona, resolve o poeta escrever a vários amigos, companheiros de letras e não só, a despedir-se, neles, da vida que considera acabada. E vai-lhes enviando poesias, como que a dizer: eu desapareci! Sou um vivo-morto! Mas ainda aqui estou e vede, vede como tinha valor esta cabeça que submeteram a tratos de polé! Como era poderosa a veia poética que a Justiça do país em que nasci desprezou e jogou no charco! Assim , por exemplo, “de despedida a Vitorino Nemésio”:
Este meu lago de hoje foi de prata:
o lago de um Poeta…
É hoje um lago de hulha, e nem ilhota
na solidão abstracta.
Nega-se à Lua, ao Sol e à goleta
onde flâmula bata.
Mirou-se nele o Brigue do Cometa,
nem crânio hoje retrata
Mas no fundão, em berços
de Albuquerques
ossadas de Dunquerques,
serpes assustadoras de navios:
o Brigue espera, e beijos que rebusco,
dados ao lusco-fusco,
e sonhos perseguidos por safios.
O CIRCULO VICIOSO
Foi-me fugindo a alma, a pouco e pouco,
até que fiquei só na via escura.
Não tenho alma. Estou mais que louco.
Raciocino os meandros da Loucura.
Dos lindes da memória desentoco
horas boas, que sinto de tortura.
Em desespero tudo mudo e troco:
tudo escurece a trágica negrura.
Num círculo vicioso, assim, prossigo
a enegrecer de versos lauda a lauda,
tal um gato a girar atrás da cauda.
Versos eu suo em que sempre digo
a mesma angústa por imagem nova,
tal um cadáver a trocar de cova.
E “de despedida a Mourão Ferreira”:
No já citado prefácio-estudo à obra do escritor diz o Prof. Cândido Franco: “E poesia foi toda a obra de Tomaz de Figueiredo, da primeira à última linha…e “Viagens no Meu Reino (1968) , decassílabos brancos a perder de vista, onde a corda da branda lira neogarretista (que o Prof. Encontra em “Guitarra”, 1956) estoira diante do absurdo da borrasca, ou os outros muitos que ele guardou inéditos, e só agora, nesta edição, mais que merecida, aparecem.. Há nestes novos livros a surpresa do soneta, mas o aprumo dessa ordem formal, a cinta desse aperto, nada tiram à síncope das ideias. “No longo poema a que chamou “Sangue de Cristo”, o poeta que prevê os tristes futuros que o esperam, continua embrenhado, sempre embrenhado, no mal que o apoquenta, ainda que ao mesmo tempo readquira já a sua capacidade de observador sarcástico e o seu antigo “panache”.
Eu sei, eu sei quantos dirão um dia,
insensíveis a esta negra mágoa
que nem me aceita encharque
os olhos de água.
Eu sei…Eu sei…Dirão que ainda bem
que eu penei os infernos de agonia
donde corre este rio de poesia.
Esta poesia do absoluto Só,
do que tem tudo e que nada tem
do defunto que a dita já do Além,
Hão-de gozar-lhe o travo original,
complexo de açucena, louro e pó,
de alegria inibida e solto dó.
Será bem para os outros o meu mal…
E, termina o poema, dolorosamente, afirmando:
Mais um livro! Acabou-se! Mais um livro!
Noutro vou repisar quanto já disse,
vou glosar o intermito infelice.
Das penas da Poesia não me livro…
.
Creio que se efectivamente foi necessária tanta dor para que tão copiosa e bela poesia nos fosse legada, o próprio poeta, que tanto se enredou na sua tristeza, teria de bom grado prescindido da torrente poética que o atormentava, a troco de tempos antigos bem mais felizes – até mesmo queles que já não sendo os do bem-perdido, eram ainda dias em que relativamente adaptado à sua solidão familiar, encontrava em Estarreja um núcleo de bons amigos que, a par do prazer da escrita, lhe amenizavam a vida. Muitas vezes fui a Estarreja passar com ele uns dias. E era um Pai feliz que encontrava – feliz por certo com a minha visita, mas também com os amigos que me apresentava, com os locais que conhecia e onde me fotografava, com o estatuto social que havia adquirido, com a vida que ia decorrendo, e lhe trazia, supremo bem, a sua afirmação como escritor.
Mas, a sua “Má Estrela”, fruto por certo do seu querer-se apenas escritor, menorizando a burocracia do seu cargo oficial, acarretou-lhe esses tempos de tormenta a que chama “bem para os outros e meu mal”. E, por fim, será, uma vez mais, interessante anotar o que Bigotte Chorão afirma sobre Tomaz de Figueiredo, e que tão bem se enquadra nesta fase da vida do escritor: “A sua prosa densa e rica ignora, e até repudia, o português básico e desleixado. E o seu universo agónico, debruçado sobre um poço onde se reflecte um rosto de amargura, não nos convida a uma leitura agradável e repousada… Nem o riso, que não falta na ficção, no teatro e mesmo na poesia de Tomaz de Figueiredo, alivia a tensão. Pelo contrário, o riso é por vezes tão amargo, que as lágrimas seriam serenas e sedativas como a agua da chuva caindo sobre a terra calcinada:”

Uma das salas da Casa de Casares dedicadas à memória do escritor