TOMAZ
de FIGUEIREDO - Poeta
Submetido a tão iníquo processo – do qual saiu totalmente ilibado - tão dolorosa é a situação em que o mergulharam que sua mulher, ao sabê-lo assim, e tão injustamente acusado, vem em seu auxílio e tudo faz para lhe minorar o sofrimento: acompanha-o nos duros dias de tratamento, toma a peito a sua defesa, prepara-lhe o retorno a Estarreja, quando, a conselho do médico assistente, que vê nesse retorno precioso auxiliar de uma total cura , é reintegrado no seu cargo de notário. Mais tarde, vai ainda empenhar-se na obtenção da reforma por que Tomaz de Figueiredo muito anseia e, obtida esta, reabrir-lhe a casa de Lisboa, onde, então, já não habita.
Mas…temendo o seu caracter exaltado, que bem conhece, sabendo-o obsessivo nos seus amores e desamores, por demais possessivo a ponto de lhe impor o “ou eu, ou eles”, (sendo “eles” a sua família de berço, com quem o escritor, sem qualquer justificação racional, de há muito cortara relações), não deseja regressar a uma coabitação que, de antemão, sabia resultar em insucesso, não o acompanha nesse seu regresso a Lisboa.
Tal facto constitui para o escritor profunda desilusão – congemina, então, como que uma duplicação da personalidade de sua mulher: “a actual”, que, sem qualquer senso ou preocupações de justiça, vai, com a caneta, “castigar”, e a antiga, a da “noiva”, a quem não esquece e que lhe acalenta os sonhos vividos na juventude.
O Haverá melhor forma de terminar este longo itinerário ilustrativo da obra poética de Tomaz de Figueiredo do que citando, uma vez mais, o Prof. Cândido Franco? Julgo que não. Eis, pois, o que sobre ele afirmou: “A obra escrita de Tomaz de Figueiredo é um dos picos da literatura portuguesa do século XX. Valha a verdade que isto nada quer dizer, mas, ainda assim, alerta para a dificuldade de nos dias de hoje se encontrarem, na mesma língua, mais do que um, dois ou três escritores com o seu estalão. Disse que a sua obra é cume da literatura portuguesa do século XX. Não tanto assim, calhando. É preferível deixar para outros a literatura e o seu pequeno tráfico de golpes baixos e dar-lhe a ele, ao que viveu solitário e selvagem numa toca do lobo, a aura poética do desastre, esse nimbo de luz que só uma aventura espiritual vivida através das palavras pode criar.”
Vieste, amor antigo, amor de sempre,
e, tanto mais amor, quanto desgraça,
quanto mais foste Mal, Fatalidade,
em sonhos encantar-me e torturar-me.
Vieste, nesse tempo, ainda amorosa,
não com olhares de raiva e de anátema,
tuas mãos entregar-me confiada.
………………………………………………
Sonhei contigo. A tua voz, aquela
que ainda tens – quanto de ti ficou –
não sei que me dizia, mas dizia
cousas de antigamente. Ah! que mar
de paixão e de nuvens, misterioso,
tornou a empolar-se-me no peito.
E ao mesmo tempo, dentro do meu sonho,
a saber que era sonho, que acordava.
Amor. Ó meu Amor, sonhei contigo.
Obtida a reforma, um novo e bem mais feliz período de vida se inicia: ainda que não totalmente liberto da grave tristeza que o afectou, Tomaz de Figueiredo está por fim livre do “papel azul com margens demarcadas”. Papel, agora, só aquele que, amorosamente vai cobrindo com a sua inigualável caligrafia. Por fim o escritor renasce e reaparece.
Bigotte Chorão no lo retrata: “Liberto do papel selado, restituído à vida, pôde, enfim, Tomaz de Figueiredo, dar-se a tempo inteiro à sua vocação literária, que o salvou a ele e enriqueceu a nossa literatura de uma obra densa de prosa e drama…Com a preparação e publicação dos seus livros e o convívio de amigos de velha e recente data, entre os quais parecia o mais novo e era, sem dúvida, o mais irreverente, Tomaz de Figueiredo renascia…Exercitava, à mesa de “A Brasileira do Chiado”, uma verve inesgotável…dirigia-se ao desaparecido café “Aviz”, aos Restauradores, onde pontificava noutra tertúlia. “Menino” isto, “rapaz” aquilo, eram expressões de afecto paternal que ele dirigia aos companheiros em idade de poderem ser seus filhos. Era um sentimental o velho sarcasta Tomaz de Figueiredo”. Nestes dez últimos anos de vida mantem-se o poeta, renasce o contista e o romancista, aparece o dramaturgo: são anos de intensa e afirmada produção literária, por vezes magoada como em o “Monólogo em Elsenor”, por vezes sarcasticamente mordaz, como em os “Dom Tanas de Barbatanas” e nas peças teatrais.A sua obra é, uma vez mais, aplaudida pela crítica e confirmada com a obtenção de prémios literários. O escrever e aprimorar dos livros que anualmente são publicados enchem-lhe a vida e levam-no a reencontrar o antigo orgulho do seu Eu, que tão vivamente sentira espezinhado. É então que, no último ano de vida, a poesia irrompe com renovada, embora diferente, pujança: longe dos sonetos e dos longos poemas de antigamente, apresenta-se agora com breves textos, e, por vezes, quase fotográficos apontamentos poéticos que, em nada desmerecendo dos antigos, até antes pelo contrário, vão, postumamente sendo publicados em páginas culturais, vindo, na sua totalidade, a lume em “As Mãos Vazias”, conjunto inserido na Poesia II. “Poesia de melancolia crepuscular” lhe chama Bigotte Chorão.
Eis algumas poesias dessa época:
XXX
Quando nem já sequer eu tenho Outuno,
quando memória só (memória e abandono)
hão-de seguir os grilos e as cigarras
cantando,
hidrângeas azulando,
o moscatel a açucarar nas parras,
no peito das donzelas os limões
e novos corações.
Ó luz da minha luz, quando no fim te disperses,
quando, por fim , o Sono,
hão-de seguir a perfumar alperces.
Quando nem já sequer eu tenha Outono.
À mesa do botequim
a olhar dos mármores os veios
até me esqueço de mim.
Pombal de pombos-correios
já fui, mas chegou-me o Outono,
e todos os sonhos dei-os.
Se ao menos me dera o sono,
se viera o sono em troca
da sensação de abandono!
XXXI
XXXIII
Assim nascido,
a nada mais querer do que ser eu,
perdido
para quanto não seja azul e céu.
Sigo a assoprar o apagado lume,
a inventar na morte, beijos e perfume,
à patada a conselhos e impecilhos,
a fazer versos como o sol dá cor,
como um ventre dá filhos,
a amendoeira flor,
o piano bemóis,
o diamante sóis.
XXXVI
Pára aí, coração, olha os morcegos
e asas já sem pombas,
passadeiras de pregos,
cata-ventos virados pelas bombas.
É tempo de parar.
Vale a pena bater depois do fim do luar?
Mas no corcel do sangue o coração cavalga,
ao mesmo passo em flor e frio de alga.